'SOMOS CADA VEZ MENOS FELIZES E PRODUTIVOS PORQUE ESTAMOS VICIADOS EM TECNOLOGIA',SEGUNDO A JORNALISTA ESPANHOLA MARTA PEIRANO,AUTORA DO LIVRO 'O INIMIGO CONHECE O SISTEMA'
‘Somos
cada vez menos felizes e produtivos porque estamos viciados na tecnologia’
"Há
um usuário novo, uma notícia nova, um novo recurso. Alguém fez algo, publicou
algo, enviou uma foto de algo, rotulou algo. Você tem cinco mensagens, vinte
curtidas, doze comentários, oito retweets"

'Todos os aplicativos existentes são baseados no design mais viciante de que se tem notícia', diz Marta Peirano
Foto: Getty Images / BBC News Brasil
"Há um usuário novo, uma notícia nova, um novo recurso.
Alguém fez algo, publicou algo, enviou uma foto de algo, rotulou algo. Você tem
cinco mensagens, vinte curtidas, doze comentários, oito retweets. (...) As
pessoas que você segue seguem esta conta, estão falando sobre este tópico,
lendo este livro, assistindo a este vídeo, usando este boné, comendo esta
tigela de iogurte com mirtilos, bebendo este drinque, cantando esta
música."
O cotidiano digital descrito
pela jornalista espanhola Marta Peirano, autora do livro El enemigo conoce el
sistema (O inimigo conhece o sistema, em tradução livre), esconde na verdade
algo nada trivial: um sequestro rotineiro de nossos cérebros, energia, horas de
sono e até da possibilidade de amar no que ela chama de "economia da
atenção", movida por tecnologias como o celular.
Nesse ciclo, os poderosos do sistema enriquecem e contam com os
melhores cérebros do mundo trabalhando para aumentar os lucros enquanto
entregamos tudo a eles.
"O preço de qualquer coisa
é a quantidade de vida que você oferece em troca", diz a jornalista.
Desde os anos 90, quando
descobriu a cena dos hackers em Madri, até hoje, ela não parou de enxergar a
tecnologia com um olhar crítico e reflexivo. Seu livro narra desde o início
libertário da revolução digital até seu caminho para uma "ditadura em potencial",
que para ela avança aos trancos e barrancos, sem que percebamos muito.
Marta Peirano foi uma das participantes do evento Hay Festival
Cartagena, um encontro de escritores e pensadores que aconteceu na cidade
colombiana entre 30 de janeiro e 2 de fevereiro. A seguir, leia a entrevista
concedida à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.
BBC News Mundo - Você diz que a
'economia da atenção' nos rouba horas de sono, descanso e vida social. Por quê?
Marta Peirano - A economia da
atenção, ou o capitalismo de vigilância, ganha dinheiro chamando nossa atenção.
É um modelo de negócios que depende que instalemos seus aplicativos, para que
eles tenham um posto de vigilância de nossas vidas. Pode ser uma TV
inteligente, um celular no bolso, uma caixinha de som de última geração, uma
assinatura da Netflix ou da Apple.
E eles querem que você os use
pelo maior tempo possível, porque é assim que você gera dados que os fazem
ganhar dinheiro.
BBC News Mundo - Quais dados
são gerados enquanto alguém assiste a uma série, por exemplo?
Peirano - A Netflix tem muitos
recursos para garantir que, em vez de assistir a um capítulo por semana, como
fazíamos antes, você veja toda a temporada em uma maratona. Seu próprio sistema
de vigilância sabe quanto tempo passamos assistindo, quando paramos para ir ao
banheiro ou jantar, a quantos episódios somos capazes de assistir antes de
adormecer. Isso os ajuda a refinar sua interface.
Se chegarmos ao capítulo quatro e formos para a cama, eles sabem
que esse é um ponto de desconexão. Então eles chamarão 50 gênios para resolver
isso e, na próxima série, ficaremos até o capítulo sete.
BBC News Mundo - Os maiores
cérebros do mundo trabalham para sugar nossa vida?
Peirano - Todos os aplicativos
existentes são baseados no design mais viciante de que se tem notícia, uma
espécie de caça-níquel que faz o sistema produzir o maior número possível de
pequenos eventos inesperados no menor tempo possível. Na indústria de jogos,
isso é chamado de frequência de eventos. Quanto maior a frequência, mais rápido
você fica viciado, pois é uma sequência de dopamina.
Toda vez que há um evento, você
recebe uma injeção de dopamina — quanto mais eventos encaixados em uma hora,
mais você fica viciado.
BBC News Mundo - Todo tuíte que
leio, todo post no Facebook que chama minha atenção, toda pessoa no Tinder de
quem gosto é um 'evento'?
Peirano - São eventos. E na
psicologia do condicionamento, há o condicionamento de intervalo variável, no
qual você não sabe o que vai acontecer. Você abre o Twitter e não sabe se vai
retuitar algo ou se vai se tornar a rainha da sua galera pelos próximos 20 minutos.
Não sabendo se receberá uma recompensa, uma punição ou nada,
você fica viciado mais rapidamente.
A lógica deste mecanismo faz
com que você continue tentando, para entender o padrão. E quanto menos padrão
houver, mais seu cérebro ficará preso e continuará, como os ratinhos na caixa
de [B.F.] Skinner, que inventou o condicionamento de intervalo variável. O rato
ativa a alavanca obsessivamente, a comida saindo ou não.
BBC News Mundo - Os adultos
podem entender isso, mas o que acontece com as crianças que apresentam sintomas
de abstinência quando não estão conectadas ao Instagram, YouTube, Snapchat, Tik
Tok por exemplo?
Peirano - As redes sociais são
como máquinas caça-níqueis, quantificadas na forma de curtidas, corações,
quantas pessoas viram seu post. E isso gera um vício especial, porque trata-se
do que a sua comunidade diz — se o aceita, se o valoriza. Quando essa
aceitação, que é completamente ilusória, entra em sua vida, você fica viciado,
porque somos condicionados a querer ser parte do grupo.
Eles [as empresas] conseguiram
quantificar essa avaliação e transformá-la em uma injeção de dopamina. As
crianças ficam viciadas? Mais rápido do que qualquer um. E não é que elas não
tenham força de vontade, é que elas nem entendem por que isso pode ser ruim.
Não deixamos nossos filhos beberem Coca-Cola e comer balas
porque sabemos que o açúcar é prejudicial; mas damos a eles telas para serem
entretidos, porque dessa forma não precisamos interagir com eles.
BBC News Mundo - E o que
podemos fazer?
Peirano - Interagir com elas.
Uma criança que não tem uma tela fica entediada. E uma criança entediada pode
ser irritante, se você não estiver disposto a interagir com ela, porque talvez
você prefira estar fazendo outras coisas.
BBC News Mundo - Olhando para
sua própria tela, por exemplo?
Peirano - Vemos famílias
inteiras ligadas ao celular e o que está acontecendo é que cada um está
administrando seu próprio vício. Todo mundo sabe que os jogos de azar são
ruins, que a heroína é ruim, mas o Twitter, o Facebook, não — porque eles
também se tornaram ferramentas de produtividade.
Então, eu, que sou jornalista,
quando entro no Twitter é porque preciso me informar; a cabeleireira no
Instagram estará assistindo a um tutorial; há uma desculpa para todos.
O vício é o mesmo, mas cada um
o administra de maneira diferente. E dizemos a nós mesmos que não é um vício,
mas que estamos ficando atualizados e mais produtivos.
BBC News Mundo - Poderíamos nos caracterizar como viciados em
tecnologia?
Peirano - Não somos viciados em
tecnologia, somos viciados em injeções de dopamina que certas tecnologias
incluíram em suas plataformas. Isso não é por acaso, é deliberado.
Há um homem ensinando em
Stanford (universidade) àqueles que criam startups para gerar esse tipo de
dependência.
Existem consultores no mundo
que vão às empresas para explicar como provocá-la. A economia da atenção usa o
vício para otimizar o tempo que gastamos na frente das telas.

BBC: Peirano diz que todos estamos
viciados, mas cada um administra — e justifica — seu vício de uma maneira
diferente (Foto: GETTY IMAGES VIA BBC )
BBC News Mundo - Como você fala
no livro, isso também acontece com a comida, certo? Somos manipulados por
cheiros, ingredientes, e nos culpamos por falta de vontade e autocontrole (na
dieta, por exemplo).
Peirano - É quase um ciclo de
abuso, porque a empresa contrata 150 gênios para criar um produto que gera
dependência instantânea.
Seu cérebro é manipulado para
que a combinação exata de gordura, açúcar e sal gere uma sensação boa, mas como
isso [a combinação] não nutre o corpo, a fome nunca passa, e você experimenta
um tipo de curto-circuito: seu cérebro está pedindo mais, porque é gostoso, mas
o resto do seu corpo diz que está com fome.
Como no anúncio da Pringles,
"Once you pop, you can't stop" [depois que você abre, não consegue
parar, em tradução livre]. O que é absolutamente verdade, porque abro um pote e
até que eu o coma inteiro, não consigo pensar em outra coisa.
Então, dizem: 'bem, isso é porque você é um glutão'. O pecado da
gula! Como você não sabe se controlar, vou vender um produto que você pode
comer e comer e não fará você engordar, os iogurtes light, a Coca-Cola sem
açúcar.
E a culpa faz parte desse
processo. No momento, no Vale do Silício, muitas pessoas estão fazendo
aplicativos para que você gaste menos tempo nos aplicativos. Esse é o iogurte.
BBC News Mundo - Essa
conscientização, de entender como funciona, ajuda? É o primeiro passo?
Peirano - Acho que sim. Também
percebo que o vício não tem nada a ver com o conteúdo dos aplicativos.
Você não é viciado em notícias,
é viciado em Twitter; não é viciado em decoração de interiores, é viciado em
Pinterest; não é viciado em seus amigos ou nos seus filhos maravilhosos cujas
fotos são postadas, você é viciado em Instagram.
O vício é gerado pelo
aplicativo e, quando você o entende, começa a vê-lo de maneira diferente. Não é
falta de vontade: eles são projetados para oferecer cargas de dopamina, que dão
satisfação imediata e afastam de qualquer outra coisa que não dá isso na mesma
medida, como brincar com seu filho, passar tempo com seu parceiro, ir para a
natureza ou terminar um trabalho — tudo isso exige uma dedicação, já que há
satisfação, só que não imediata.
BBC News Mundo - De tudo o que você cita, manipulações,
vigilância, vícios, o que mais a assusta?
Peirano - O que mais me
preocupa é a facilidade com que as pessoas estão convencidas a renunciar aos
seus direitos mais fundamentais e a dizer: quem se importa com meus dados? Quem
se importa com onde eu estive?
Há 40 anos, pessoas morriam
pelo direito de se encontrar com outras pessoas sem que o governo soubesse suas
identidades; pelo direito de ter conversas privadas ou pelo direito de sua
empresa não saber se há uma pessoa com câncer em sua família.
Custou-nos muito sangue para
obtê-los (os direitos) e agora estamos abandonando-os com um desprendimento que
não é natural — é implantado e alimentado por um ecossistema que se beneficia
dessa leveza.
BBC News Mundo - Quando você
envia um email, sabe que outros podem lê-lo, mas de fato pensamos: quem se
importará com o que eu escrevo?
Peirano - Ninguém realmente se
importa, até o momento que se importe, porque todo esse material é armazenado
e, se estiver disponível para o governo, ele terá ferramentas para contar
qualquer história sobre você. E você não poderá refutá-lo.
Se o governo quiser colocá-lo
na cadeia porque você produz um material crítico, ele pode encontrar uma
maneira de vinculá-lo a um terrorista. Bem, talvez seus filhos tenham estudado
juntos por um tempo e possa ser mostrado que as placas dos seus carros
coincidiram várias vezes na mesma estrada por três anos. Nesse sentido, seus
dados são perigosos.
BBC News Mundo - Você diz no livro que "2,5 quintilhões de
dados são gerados todos os dias", incluindo milhões de e-mails, tuítes,
horas de Netflix e pesquisas no Google. O que acontece com tudo isso?
Peirano - Estamos obcecados com
nossos dados pessoais, fotos, mensagens... Mas o valor de verdade é
estatístico, porque suas mensagens, com as de outras bilhões de pessoas,
informam a uma empresa ou a um governo quem somos coletivamente.
Eles os usam primeiro para os
anunciantes. E depois para criar previsões, porque este é um mercado de
futuros.
Eles sabem que quando, em um
país com certas características, o preço da eletricidade sobe entre 12% e 15%,
acontece X; mas, se sobe entre 17% e 30%, outra coisa Y acontece. As previsões
são usadas para manipular e ajustar suas atividades — para saber, por exemplo,
até onde você pode prejudicar a população com o preço das coisas antes ela se
revolte contra você ou comece a se suicidar em massa.
BBC News Mundo - Como o que
aconteceu no Chile, com manifestações motivadas inicialmente pelo aumento no
preço da passagem do metrô..?
Peirano - Talvez o governo
chileno não esteja processando dessa maneira, mas o Facebook está, o Google
está — porque todas as pessoas na rua têm o celular no bolso. E elas o
carregaram durante os últimos anos de sua vida.
O Facebook sabe em que bairros aconteceu o que e por quê; como
as pessoas se reúnem e como se dispersam; quantos policiais precisam chegar
para que a manifestação se dissolva sem mortes.
BBC News Mundo - Mas quem está
disposto a ficar sem o celular, a internet? Qual é o caminho para o cidadão
normal?
Peirano - O problema não é o
celular, não é a internet. Todas as tecnologias das quais dependemos são
ferramentas da vida contemporânea, voluntariamente as colocamos em nossos
celulares. Mas elas não precisam da vigilância para funcionar, nem precisam monitorar
você para prestar um serviço. Eles não precisam disso, o que acontece é que a
economia de dados é muito gulosa.
BBC News Mundo - Os negócios
são tão lucrativos que vão continuar a fazê-lo da mesma maneira ainda que
tentemos impor limites?
Peirano - É muito difícil para
um governo enfrentar tecnologias que facilitam esse controle populacional, que
é interessante. Mas a ideia é exigir que isso aconteça.
Se, agora, você desativar todos
os sistemas de geolocalização do seu celular, eles continuarão a geolocalizá-lo.
Assim como no Facebook ou no
Twitter, em que você pode bloquear o que posta para algumas pessoas ou para
todos — somente você... e o Facebook veem. O que acontece nos centros de dados
deles, acontece para você e para eles. Você não pode bloquear o Facebook,
porque você está no Facebook.
BBC News Mundo - Você está sugerindo que precisamos nos rebelar
e exigir privacidade?
Peirano - Mas não contra
empresas. É natural que elas se beneficiem de uma fonte de financiamento tão
barata e gloriosamente eficaz.
O que não é natural é que um
governo destinado a proteger os direitos de seus cidadãos o permita. E a
questão é que cada vez mais governos chegam ao poder graças a essas
ferramentas.
Então, o que deve ser feito?
Precisamos começar a transformar essa questão fundamental em um debate política
nos níveis local e mais amplo, ou seja, em ação coletiva, ação política.
BBC News Mundo - Esse debate
está acontecendo em algum lugar do mundo?
Peirano - Nas primárias
democratas da campanha presidencial dos EUA deste ano, essa é uma das questões
cruciais. Está em debate se essas empresas devem ser gerenciadas de outra
maneira ou serem fragmentadas, porque além de tudo também são um monopólio.
No entanto, na Europa e na
América Latina, nos cansamos de falar sobre notícias falsas, seus efeitos,
campanhas tóxicas... Na Espanha, houve três eleições gerais em três anos e
nenhum político fala sobre isso.
BBC News Mundo - O sistema é
nosso inimigo, então?
Peirano - Somos integrados a e
dependemos de sistemas que não sabemos como funcionam ou o que querem de nós.
Facebook, Google e outros dizem que querem que nossa vida seja mais fácil, que
entremos em contato com nossos entes queridos, que sejamos mais eficientes e
trabalhemos melhor, mas o objetivo deles não é esse, eles não foram projetados
para isso, mas para sugar nossos dados, nos manipular e vender coisas.

O vício em aplicativos não tem a ver diretamente com o conteúdo deles, mas com seu design, que desperta injeções de dopaminas
Foto: Getty Images / BBC News Brasil
Fonte:https://epocanegocios.globo.com/Tecnologia/noticia/2020/02/somos-cada-vez-menos-felizes-e-produtivos-porque-estamos-viciados-na-tecnologia.html
'Se, agora, você desativar todos os sistemas de geolocalização do seu celular, eles continuarão a geolocalizá-lo', alerta jornalista espanhola
Foto: Getty Images / BBC News Brasil
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