Livro evidencia dilemas científicos sobre ocupação humana nas Américas
"Admirável novo mundo — uma história da ocupação humana nas Américas" evidencia o que a falta de consenso na comunidade científica tem a ver com a maneira como o conhecimento é construído e disseminado
Por Marília Marasciulo, com edição de Luiza Monteiro
30/12/2023 09h07 Atualizado há 2 dias
Até o final do século 20, arqueólogos questionados sobre quem foram os primeiros habitantes do continente americano provavelmente responderiam: o povo de Clóvis. O grupo de caçadores de mamutes e outros grandes mamíferos estava espalhado por praticamente todo o atual território dos Estados Unidos há cerca de 13 mil anos, levando pesquisadores a crer que teriam sido eles os primeiros colonizadores das Américas Central e do Sul.
O modelo, conhecido em inglês como Clovis First, caiu por terra quando, no fim dos anos 1980, especialistas encontraram provas de presença humana no extremo sul do continente há 14,6 mil anos.
Desde então, qualquer consenso sobre como se deu a ocupação humana nas Américas evaporou. “Por mais paradoxal que possa parecer, hoje temos menos certezas sobre o povoamento do continente do que tínhamos algumas décadas atrás”, escreve o jornalista Bernardo Esteves em Admirável novo mundo — uma história da ocupação humana nas Américas, lançado em outubro pela Companhia das Letras.
“Os primeiros americanos eram asiáticos na sua origem. Assim, os povos indígenas que existem hoje são todos descendentes de uma população que veio da Sibéria. Aí se interrompem as nossas certezas consensuais”, completa Esteves, que é doutor em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em entrevista a GALILEU.
Fruto de uma década de pesquisa, que incluiu mais de uma centena de entrevistas com 59 pessoas, entre elas representantes de povos indígenas e pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento, o livro traça mais do que a história sobre a origem de nossos antepassados — aliás, quem ler esperando uma resposta conclusiva provavelmente irá se decepcionar.
O tema central e grande motivação para a pesquisa de Esteves é, no fundo, a controvérsia científica. “As controvérsias são, de certa maneira, uma janela para a gente entender a construção do conhecimento científico. Quando os cientistas discordam, eles se obrigam a questionar”, aponta.
Por mais que existam indícios arqueológicos de ocupação humana nas Américas datados em pelo menos 30 mil anos, eles não são aceitos pela ciência tradicional. Um exemplo brasileiro é o dos sítios arqueológicos da Serra da Capivara, no Piauí.
Em 1986, a arqueóloga franco-brasileira Niède Guidon publicou um artigo relatando escavações feitas no local. A partir delas, foram encontrados restos de fogueira e artefatos produzidos por humanos que viveram por lá há quase 40 mil anos.
Publicado na Nature, um dos periódicos científicos mais respeitados do mundo, o estudo não foi o suficiente para convencer outros pesquisadores, sobretudo aqueles da Europa e dos EUA, sobre a presença desses antigos habitantes por aqui.
Muitos consideraram que as ferramentas não passavam de pedras lascadas pela natureza e não bastavam para destronar o modelo de Clóvis. “A maioria dos pesquisadores hoje defende que a entrada [nas Américas] se deu em algum momento entre 16 mil e 20 mil anos atrás”, explica Esteves.
Isso provavelmente aconteceu pela Beríngia, uma faixa de terra ligando a Ásia à América do Norte que ficou emersa até cerca de 13 mil anos atrás, a partir de quando o derretimento de gelo provocou o aumento do nível dos oceanos. “Hoje, a barreira que parece dividir os estudiosos é o período que os geólogos chamam de último máximo glacial”, explica o autor de Admirável novo mundo.
A janela que vai de 16 mil a 19 mil anos atrás foi o último momento que fez frio de verdade no planeta. De um lado, estão os que defendem que a ocupação começou antes disso; de outro, os que se apoiam na genética e nos estudos do DNA contemporâneo para concluir que os humanos chegaram às Américas somente depois do último máximo glacial
Esse imbróglio científico é o que torna a já complexa pergunta “de onde viemos?” ainda mais curiosa. “O estudo da ocupação humana nas Américas levanta tanto a discussão processual de como a gente busca evidências sobre a ocupação e quais delas são relevantes, quanto a do que a gente considera uma evidência”, avalia o historiador Luiz Alves, doutor em História das Ciências e da Saúde e coordenador-adjunto do Observatório História e Saúde na Fiocruz.
Ao nos questionarmos “como sabemos o que sabemos?”, somos provocados a refletir sobre como — e por quem — o conhecimento científico é construído, e quais as consequências disso.
Construindo paradigmas
"O ponto de partida é entender que a ciência é uma atividade coletiva”, pontua Alves. Dentro dessa atividade, um conceito-chave é o de paradigma, elaborado pelo filósofo da ciência Thomas Kuhn, dos Estados Unidos. Trata-se de um conjunto de práticas e pensamentos que norteiam uma disciplina científica.
“Estamos falando de grandes teorias e formas de compreender o mundo que orientam tanto a maneira como o cientista pensa quanto a como ele age”, explica o historiador, que traz como exemplo de paradigma a Mecânica Clássica, na física. Baseada nos estudos de Galileu Galilei e Isaac Newton, no século 17, ela teve algumas de suas “certezas” desbancadas no início do século 20, com as teorias da Relatividade apresentadas por Albert Einstein.
Se um paradigma deixa de conseguir explicar resultados incongruentes obtidos em experimentos, temos uma espécie de crise no que Kuhn chama de “ciência normal” — isto é, quando há consenso entre os cientistas sobre teorias centrais de suas disciplinas. Ocorre, então, a ciência “extraordinária” ou “revolucionária”, ainda no linguajar de Kuhn, e parte-se em busca de um novo paradigma.
É mais ou menos esse o momento em que se encontra o estudo da ocupação humana nas Américas. “É como se a gente tivesse um céu estrelado, e uma nova teoria acrescentasse novas estrelas naquele céu. A gente tem uma mudança na geografia, mas [isso] não quer dizer que outras estrelas desapareçam”, compara Alves, com base no pensamento da historiadora das ciências Lorraine Daston, dos EUA, que busca problematizar a ideia de objetividade científica.
Essa problematização é importante, pois os paradigmas existentes foram construídos principalmente a partir de uma perspectiva europeia e norte-americana. Esteves recorre à reflexão de outro filósofo da ciência, o francês Bruno Latour, que afirmou que “o real não é aquilo que existe, é aquilo que resiste.”
Na visão de Latour, a força de um enunciado científico ou de uma determinada teoria não depende do mérito do conhecimento, e sim das relações de poder que fazem a ideia ter aderência social. “Ou seja, uma interpretação ameríndia sobre a ocupação humana não é mais ou menos válida que uma europeia por conta da natureza do enunciado, mas pela capacidade das pessoas e de todos na ciência, de modo geral, mobilizarem esse enunciado”, completa Alves. “Acho que esse é um ponto de chegada na discussão do livro do Bernardo: ao eleger um conjunto de ideias e valores como epistemicamente virtuosos, você exclui outras formas de saber.”
Mais sujeitos no fazer ciência
Trazer tais discussões para o grande público não é tarefa fácil — especialmente em tempos de negacionismo científico. “A gente vê uma série de nós [cientistas] circulando na esfera pública. Uma série de defesas incondicionais da ciência, mas que reforçam o modelo que algumas escolas dos estudos sociais da ciência vêm se esforçando para combater”, aponta Esteves.
Na visão dele, essa seria uma rara oportunidade de mostrar para as pessoas que a ciência não é mais fraca por ser incerta — pelo contrário, é justamente por exigir um conjunto de elementos que ela se torna sólida.
“Se a população fosse mais familiarizada com a forma como os cientistas chegam às suas convicções, acho que a gente teria uma espécie de vacina para o negacionismo. As incertezas e as limitações fazem parte do conhecimento”, destaca o jornalista.
“O que é verdade hoje não vai ser verdade daqui a 20 anos, nem era verdade 50 anos atrás. Talvez a gente venha até a descartar essa história que eu conto neste livro. Não sei o que vai ser descoberto pela arqueologia, pela genética, por outras ciências nas próximas décadas. Parte da beleza da ciência está aí também, e isso é o oposto da ideia de uma ciência universal, neutra, que sempre esteve aí.”
Essa seria uma oportunidade também de incluir outros atores nesse conjunto de elementos. “Tem algo muito forte no livro, que é eu buscar valorizar a perspectiva indígena sobre a própria história”, conta Esteves. “Fico muito orgulhoso de estar trazendo isso, porque acho que é uma mosca que o jornalismo comeu por anos.”
O principal ponto em questão é a ética das pesquisas genéticas com amostras biológicas de povos indígenas. Em 2015, um estudo genético identificou que alguns indígenas das etnias Paiter-Suruí e Karitiana, de Rondônia, e Xavante, no Mato Grosso, têm sequências no DNA encontradas somente na Oceania e no Sudeste Asiático — a população misteriosa foi batizada de “Y”.
O problema é que aspectos da cultura dos indígenas estudados foram ignorados e desrespeitados. Os Paiter-Suruí, por exemplo, têm regras rígidas em caso de morte — não se pode sequer falar o nome da pessoa que faleceu, caso contrário, o espírito pode se vingar, que dirá realizar estudos com sangue imortalizado.
“Quando a gente noticiou a descoberta, a gente falou muito do que foi descoberto, mas não se atentou para como foi feita essa descoberta. Os cientistas não consideraram suficientemente os interesses desses povos na maneira como desenharam as pesquisas”, destaca o jornalista.
Para o historiador da Fiocruz, é importante demarcar o que ele define como processos coloniais que permeiam a ciência. “Ela se produz a partir de encontros, mas eles são assimétricos e sempre, por mais bem-intencionado, por mais participativo que seja, é um processo baseado em relações de poder”, observa.
Na busca por equilíbrio dessas relações, Alves considera interessante a alternativa proposta principalmente por filósofas feministas — como as estadunidenses Donna Haraway e Sandra Harding: para ampliar a diversidade na ciência, é preciso pensar além da representatividade.
“É fazer a presença de grupos sociais marginalizados implicar mudanças no conhecimento produzido e nas estruturas de poder que organizam a ciência. Que esses grupos passem a produzir conhecimento não só no lugar de objetos de estudo, mas de sujeitos”, explica o especialista da Fiocruz.
Ainda que lento e tímido, esse movimento vem acontecendo — a própria ponderação de Esteves sobre a cultura indígena seria algo improvável 20 anos atrás. “É uma consciência que vem surgindo aos poucos”, avalia o autor. E aí, quem sabe um dia, diante de novos imbróglios científicos — ou até na própria solução do quebra-cabeça da ocupação das Américas —, novos paradigmas possam surgir levando em consideração outras perspectivas e visões de mundo.
Fonte:https://revistagalileu.globo.com/ciencia/arqueologia/noticia/2023/12/livro-evidencia-dilemas-cientificos-sobre-ocupacao-humana-nas-americas.ghtml
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