DEUSA CIENTISTA: KANANDA ELLER BOMBA NO TIK TOK FALANDO DE CIÊNCIA E MULHERES NEGRAS

 

Kananda Eller sobre ciência no Brasil: 'Para quem pode'
Kananda Eller sobre ciência no Brasil: 'Para quem pode' Divulgação

Por Jaquelini Cornachioni

 

A ciência é para todos. Esse é o pensamento que move a química e divulgadora científica Kananda Eller. No Instagram, a baiana, que nasceu em Plataforma, Subúrbio Ferroviário de Salvador, é conhecida como Deusa Cientista e conversa com mais de 100 mil seguidores, levando informação com recorte racial, de gênero e classe.

No Dia Internacional das Mulheres e Meninas nas Ciências, Kananda conta a Marie Claire a origem de seu amor pelo assunto, que veio da infância, durante o colégio. “A minha família me colocou em uma escola técnica, onde eu era bolsista. Venho da periferia e lembro que, diferentemente de muitas pessoas ao meu redor, tive acesso a um laboratório, por estar em colégio particular. Eu era fascinada por esse mundo”, conta a química, que relembra um dos primeiros projetos de que participou e que marcou sua vida: construir sacolas plásticas com fécula de mandioca.

Anos depois, Kananda ingressou na faculdade federal, o que foi apenas o começo de um longo caminho de estudos. Hoje mestranda em Ensino de Ciências Ambientais na USP, ela acredita em uma ciência capaz de transformar o social. Foi com esse objetivo que Kananda publicou o seu primeiro vídeo sobre o papel das mulheres negras na ciência, na internet.

Nunca tive referência de cientistas nem de artistas negras. Esse lugar não existia até mesmo na escola. Não participava das peças de teatro, porque os personagens literários das histórias têm cor e características muito bem definidas. Na faculdade, comecei a entender o meu espaço e qual é o espaço do branco, em especial o do homem branco. Não tive referências, por isso hoje construo isso para outras pessoas.
— Kananda Eller

A responsabilidade de hoje ser referência a tantas mulheres e meninas é, para ela, motivo de alegria. “Isso me faz ter certeza de que estou no caminho certo. Recebo mensagens de mulheres negras mais velhas que ingressaram na faculdade. Também vejo que muitas meninas se inspiram no meu cabelo, se identificam com a minha cor. Essa é uma luta que considero ancestral. Para chegar até aqui, outras mulheres abriram esse caminho, outras pessoas lutaram pela implementação das cotas. O que faço é uma continuação.”

A divulgação científica no Brasil

Quando pensamos nos caminhos que um cientista pode tomar, o de divulgação científica talvez não seja o primeiro que nos vem à cabeça. Essa área não apenas existe há anos, como é necessária para melhor a qualidade de vida de cada cidadão transmitindo novas ideias, propagando aprendizado, abrindo a mente e estimulando o pensamento crítico.

Agora, na era digital, plataformas como Instagram, Twitter, YouTube e TikTok, são muito usadas para esse trabalho. “Eu sabia que a divulgação científica existia, mas esse termo ainda é pouco conhecido. No YouTube, alguns canais falam sobre isso, como o Manual do Mundo, mas se trata de um homem branco, que não aborda as questões das mulheres e dos negros.”

“Quando comecei com os meus vídeos, muitas pessoas se sentiram abraçadas. Na minha época, ninguém me ensinou sobre gênero e raça, então, essa não era apenas uma necessidade minha, mas de muitas pessoas. Por isso decidi encarar a divulgação científica dessa forma política”, revela.

O maior desafio que Kananda encontra na profissão, ainda hoje, é a busca por referências. “É um caminho de muita liberdade, posso construir o meu conteúdo como bem entender. Óbvio que com responsabilidade e embasamento, mas a estrutura se torna mais maleável. Dentro dessa área, em que ainda falo sobre mulheres e negros, encontro dificuldade em fazer essas fusões pelo fato de não ter muitas pesquisas que contemplem [esse recorte], mas sempre divulgo o material que encontro. Outra dificuldade é o crescimento nas redes. Muitas mulheres que trabalham com divulgação científica não têm o mesmo reconhecimento que os homens.”

Se no Instagram ela já conta com um grande público, no TikTok os números impressionam. Alguns vídeos da divulgadora científica têm por volta de 1 milhão de visualizações. O mais famoso é sobre a vacina Pfizer, no qual Kananda conta que um homem negro foi quem liderou os estudos clínicos da vacina nos Estados Unidos: o médico nigeriano Onyema Ogbuagu.

A sede por ensinar fez com que Kananda Eller fosse uma das indicadas ao prêmio Aprendendo no TikTok, no TikTok Awards.

“Fico muito feliz com o que a internet me deu, são muitos presentes. Vejo muitas pessoas falando dos problemas, mas é um lugar importante, onde me conecto com muitas histórias. Hoje tenho conquistado liberdade financeira, a internet me permite também fazer o meu mestrado e continuar a minha carreira acadêmica, que é também o meu sonho”, conta a química, que hoje faz parte do time de influenciadores da Play9, agência comandada por Felipe Neto.

Kananda Eller em Brasília: 'Na posse de ministério mais diversa na História do Brasil', disse ela — Foto: Reprodução / Instagram

Kananda Eller em Brasília: 'Na posse de ministério mais diversa na História do Brasil', disse ela — Foto: Reprodução / Instagram

'Produzir ciência é para quem pode, ou para quem acredita'

De acordo com um relatório na Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), de 2012 para 2021, a redução do orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações foi de 84% —de R$ 11,5 bilhões para R$ 1,8 bilhão, em valores atualizados pela inflação. Nos últimos anos, um dos assuntos em alta foi o ‘apagão da ciência’.

As barreiras enfrentadas por cientistas no Brasil são muitas. Em especial quando se é uma mulher negra.

O lado bom da profissão, para Kananda, é a transformação pessoal e social, como ver o país se transformando através da ciência.

“Não tem como um país viver e se desenvolver sem ciência. Nós fornecemos os dados, as respostas, os caminhos que podemos trilhar enquanto nação e sociedade”. - Kananda Eller

Para esse novo governo, o que fica é a esperança de tempos mais leves para a ciência. Neste ano, Luciano Santos se tornou a primeira mulher negra a assumir o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. “É um lugar de maior sensibilidade. O discurso da ministra é muito alinhado com as questões de raça e gênero, ela se propõe a falar da importância da ciência e da tecnologia para esses grupos, fazendo com que eles se sintam protagonistas. Outra questão é o aumento das bolsas, porque nos últimos anos muitas pessoas deixaram de estudar por falta de verba. Pelo o que estou entendendo, as coisas estão acontecendo. Espero que a ciência chegue para todos”.

'É preciso acreditar na periferia'

A periferia pode --e deve-- fazer ciência. Para isso, é preciso acreditar. “Precisamos de políticas públicas, de incentivos e projetos. Pensar em feiras de ciência, competições científicas. Trabalhei em uma escola por dois anos e tínhamos um clube de ciências, sem laboratórios, sem nada. E as meninas e os meninos tinham muita vontade de transformar a própria comunidade”, começa Kananda.

Não existe valorização. Vou passar dez anos estudando e trabalhando, mas não tem reconhecimento, não tem os direitos mínimos de um trabalhador. Produzir ciência é para quem pode, ou para quem acredita, sonha e se sacrifica. Fazer mestrado e doutorado só com uma bolsa é acreditar muito no desenvolvimento do país, é amar o que faz. É um espaço que, para uma mulher negra, mexe muito com a autoestima, tem muitas questões psicológicas envolvidas.
— Kananda Eller

“Quero me tornar uma divulgadora científica de muita relevância no Brasil. Acredito que, para além de ciência, que é o comprometimento que eu tenho, é ter uma luta dentro desse espaço. A luta pela diversidade. A luta por aproximar a ciência de todos”.

Fonte:https://revistamarieclaire.globo.com/cultura/noticia/2023/02/deusa-cientista-kananda-eller-bomba-no-tiktok-falando-de-ciencia-e-mulheres-negras.ghtml 

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