Foto: (STR/AFP)
'Convocar sem planejamento as pessoas ao trabalho coloca
milhares em risco'
Nosso
colunista, o infectologista Carlos Starling explica os motivos neste artigo. Starling
tem mais de 30 anos de carreira e é referência nacional e internacional na área
Até quando teremos que ficar sem um abraço? Pergunta difícil de
responder. Gostaria de ter a resposta e saber que logo logo a vida voltaria ao
normal. Mas uma epidemia como esta, a imprevisibilidade é a regra.
Não esperemos que ela se comporte aqui da forma como se comportou na Ásia,
Europa , ou Estados Unidos.
Brasil é Brasil. Fizemos o dever de casa nos últimos
20 anos?
Deus é brasileiro? Deveria ser, mas estamos começando a duvidar. Se
fosse, não nos teria sentenciado com a dengue, zica, chikungunya e alguns
políticos que ocuparam o planalto neste período.
O que podemos esperar daqui para frente?
Pois bem, no século XIV, a grande epidemia de peste levou a humanidade a questionar os
designíos divinos como determinantes do nosso destino.
Seria o destino do homem sobre a Terra sofrer ou teríamos a opção de tomarmos as rédeas do nosso próprio destino? Dai, surgiu o Renascimento - um movimento que provocou profundas transformações na cultura, economia, política e religião, fazendo com que o pensamento humano nunca mais fosse o mesmo.
Seria o destino do homem sobre a Terra sofrer ou teríamos a opção de tomarmos as rédeas do nosso próprio destino? Dai, surgiu o Renascimento - um movimento que provocou profundas transformações na cultura, economia, política e religião, fazendo com que o pensamento humano nunca mais fosse o mesmo.
Pois bem, não estaríamos vivendo exatamente um momento
semelhante? Uma pandemia no contexto de uma economia também globalizada. Inevitável não
se questionar o sentido da nossa própria existência e valores que permeiam a
vida humana, como ética, moral, solidariedade e respeito mútuo.
Nesta mesma coluna, discutimos o óbvio. Mais precisamente, por
que as pessoas não fazem o óbvio. Me referia á higienização das mãos com a frequência necessária
dentro dos hospitais e as consequências deste problema.
Dissecamos a simbologia deste ato bíblico
e vimos que mão significa visão e água, vida. A união deste dois
símbolos, significa consciência máxima sobre a
vida.
Pois bem, aquilo que preconizou Semmelweis em 1847 e que vem
sendo uma batalha dos controladores de infecções hospitalares de todo o mundo por mais de um século, em menos de 2 meses
tornou-se uma regra básica de sobrevivência. Sumiram álcool liquido e em gel das
prateleiras e estoques das farmácias. Lavar
as mãos virou norma
básica e amplamente difundida dentro e fora dos hospitais.
Neste e em vários sentidos, o coronavirus vem
nos prestando um grande beneficio. Aprendizado doloroso e dispendioso. Ficamos
mais pobres enquanto capacidade de produção e, ao mesmo tempo, mais ricos e conscientes de
coisas que banalizamos durante séculos.
Aprendemos a ter que nos observar e prestar atenção em nossos
atos. Sermos expectadores de nós mesmos e aprender a conviver com a isolamento e
a solidão.
Terapeuta cruel e eficiente, nos fez mais solidários, fraternos e
preocupados com o bem-estar comum.
O vírus nos tornou
definitivamente mais humanos!
Porém, nem todos passaram por esta mutação. Herméticos não mudam
com a dor. São naturalmente imunes ao corona ou tem apenas uma “gripezinha”.
Mas e o abraço?! Quando poderemos nos
abraçar novamente?
Esta é a pergunta que me fazem todos os dias. Minhas filhas
querem correr ao ir livre e eu também não vejo a hora de voltar a pedalar na Pampulha, como faço por
mais de 15 anos.
Porém, não podemos nos enganar com falsas promessas. Estamos diante
de uma situação epidêmica nova. Ainda estamos aprendendo a lidar com este
vírus, que vem deixando um rastro de sofrimento e perdas econômicas em todo o
mundo.
Nossas projeções estatísticas, baseadas nos
cenários por onde o vírus passou, infelizmente não são das melhores.
Enquanto não tivermos vacina e tratamento
de eficácia comprovada contra este vírus, a única forma de evitarmos o colapso do sistema de
saúde e uma catástrofe epidemiológica é o isolamento social temporário.
Está é uma epidemia diferente. Não deverá se comportar
aqui, da mesma forma que na Ásia, ou Europa. Nestas regiões a epidemia começou
em indistintas classes sociais. Aqui ela ocorrerá em ondas sucessivas que
acometerão classes sociais distintas, começando pelas classe A e B (pessoas que
vieram do exterior ou turistas) e progressivamente atingindo as classes C, D e
E, com intervalos de 1 a 3 semanas.
Muito provavelmente, teremos uma evolução mais lenta para regiões com menor densidade populacional, como Norte de Minas e Sertão Nordestino. Teremos, certamente, epidemias diferentes dentro de um pais com dimensões continentais como o nosso. Daí a necessidade de termos também, diferentes estratégias de intervenção para as diversas regiões.
Muito provavelmente, teremos uma evolução mais lenta para regiões com menor densidade populacional, como Norte de Minas e Sertão Nordestino. Teremos, certamente, epidemias diferentes dentro de um pais com dimensões continentais como o nosso. Daí a necessidade de termos também, diferentes estratégias de intervenção para as diversas regiões.
Com a dispersão da epidemia para as grandes comunidades na
periferia das regiões metropolitanas, teremos provavelmente o efeito ping-pong
e novas ondas epidêmicas voltarão a acometer as classes sociais A,B e C, até
que cerca de 70% da população seja acometida. A partir deste momento o número
de casos cairá a níveis mínimos, porém o vírus continuará circulando em
indivíduos assintomáticos ou com poucos
sintomas.
Portanto as medidas de controle, como etiqueta ao tossir e espirrar,
higienização das mãos, distanciamento para contatos
pessoais e formas alternativas de nos cumprimentarmos vieram para ficar por um
longo período, podendo permanecer com uma nova forma de relacionamento entre as
pessoas.
As medidas de isolamento
social adotadas em Belo Horizonte, mesmo tendo sido no tempo correto, são paliativas. O número de
casos deve subir progressivamente, principalmente após a maior oferta de testes
diagnósticos, os quais são fundamentais para confirmação de casos suspeitos.
O isolamento social funciona como um segundo dique de contenção
para evitar que os hospitais tenham a sua capacidade assistencial suplantada e as pessoas fiquem sem assistência, particularmente,
sem suporte de terapia intensiva e ventilação mecânica.
Retardar e reduzir o número explosivo de casos dá ao estado um curto espaço de tempo para se preparar para
atender um grande numero de pessoas em estruturas menos complexas que servirão
para assistência a doentes que não necessitam de internação, mas de cuidados e
observação criteriosa.
Estas estruturas temporárias correspondem a um terceiro dique de contenção. O primeiro dique corresponde a própria residência das pessoas, onde pacientes com sintomas leves deverão permanecer em uso de medicamentos sintomáticos, sem comparecer às unidades de saúde, ou sendo atendidas e monitoradas por telemedicina.
Estas estruturas temporárias correspondem a um terceiro dique de contenção. O primeiro dique corresponde a própria residência das pessoas, onde pacientes com sintomas leves deverão permanecer em uso de medicamentos sintomáticos, sem comparecer às unidades de saúde, ou sendo atendidas e monitoradas por telemedicina.
Mas quando nossas vidas voltarão ao normal? Pergunta difícil de
responder. O indicador é o grau de esgotamento da
capacidade assistencial do hospitais. Na China, as pessoas após 3 meses
voltaram a frequentar parques e ambientes abertos. Na Itália a situação ainda
está crítica após 1 mês de isolamento social.
Com a queda da atividade econômica e o stress do confinamento a
pressão para que estas medidas sejam relaxadas aumentam dia-dia.
É nesta hora que surgem diferentes teorias de intervenção, ás quais
nunca foram testadas, mas ganham coro nos meios econômicos e políticos. Politizar a epidemia é um risco
que corremos. Os interesses diversos de um ano eleitoral se contrapõem à emergência de saúde pública,
elevando os riscos de uma catástrofe ainda maior.
No seio dessa discussão surge a proposta de uma “intervenção Vertical”, feita
pelo Dr. David Katz, diretor do Centro de Prevenção de
Doenças da Yale University. Dr. Katz propõe em vez de um
“confinamento horizontal total”, com restrição ao comércio e movimentação das
pessoas, uma intervenção mais “cirúrgica”, ou “intervenção vertical”, que
poderia causar menos danos àeconomia, evitando desemprego, queda da renda familiar e com
isto, mais doença.
Ele sugere que o isolamento social dure cerca de 2 semanas, em
vez de um período indefinido, e posteriormente, haja um isolamento
exclusivamente dos grupos mais vulneráveis, deixando que os mais jovens se
exponham ao vírus e adquiram imunidade. Os sintomáticos
devem se autoisolar e retornar ao trabalho só com o desaparecimento dos
sintomas. Os assintomáticos deveriam voltar as suas atividades normais de
imediato.
Quais os prós e contras desta
estratégia?
Os prós são facilmente identificáveis:
- Retorno ao trabalho e incremento da
produção, evitando o desemprego, a recessão e as consequências da desaceleração
da economia;
- Redução do estresse causado pelo
isolamento social; acelera o período de exposição e teoricamente aumenta o
numero de indivíduos imunes, formando uma rede de proteção aos mais
vulneráveis.
E os contras?
- Estamos diante de um vírus novo, com comportamento ainda
incerto e não sabemos nem se a exposição a ele gera
imunidade permanente;
- A teoria não leva em conta que jovens também desenvolvem
quadros graves e morrem com esta infecção. É verdade que a mortalidade até 40
anos é baixa, cerca de 0,2%, mas em uma população de 5 milhões de pessoas, como
a região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), teríamos o correspondente à
queda de dois aviões com 200 passageiros jovens;
- Temos cerca de 500 mil idosos vivendo sozinhos
na RMBH, como isolá-los do convívio social e por quanto tempo? Isto é
exequível, ético e moralmente aceitável?
Em 27/03, a Congregação da Faculdade
de Saúde Pública da USP, uma das instituições pioneiras em saúde
pública do Brasil, divulgou uma nota à imprensa com os seguintes comentários:
- “Não há contradição entre proteção da economia e proteção da
saúde pública. A recessão econômica decorrente da pandemia será global e já é
inevitável. Medidas de proteção social, especialmente o provimento de renda mínima para trabalhadores informais e
complemento de renda para populações vulneráveis, a exemplo do que outros
países estão fazendo, devem ser adotadas imediatamente.
- O isolamento exclusivo de pessoas em maior risco não é medida
viável, especialmente em um país com as características do Brasil, com elevados
índices de doenças crônicas não transmissíveis que constituem comorbidades relevantes diante
da incidência do novo coronavírus.
É importante ressaltar que a Covid-19 pode ser assintomática, tem largo potencial de propagação e, como bem revelam os dados de outros países, pode acometer igualmente jovens saudáveis que, com a sobrecarga dos serviços de saúde públicos e privados, podem vir a engrossar as estatísticas de mortes evitáveis.
É importante ressaltar que a Covid-19 pode ser assintomática, tem largo potencial de propagação e, como bem revelam os dados de outros países, pode acometer igualmente jovens saudáveis que, com a sobrecarga dos serviços de saúde públicos e privados, podem vir a engrossar as estatísticas de mortes evitáveis.
- Neste momento de crise, mostra-se urgente e essencial reforçar
as capacidades do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil, ampliando o seu financiamento, articulando de forma
eficaz e cooperativa as ações e serviços públicos de saúde prestados pela
União, Estados, Distrito Federal e Municípios, ampliando as ações de vigilância
em saúde e consolidando protocolos e diretrizes terapêuticos nacionais que
orientem a sociedade brasileira de forma segura e cientificamente eficaz. Deve
haver imediata regulação da distribuição dos leitos de UTI, articulando os setores
público e privado, a fim de garantir o acesso equitativo ao tratamento
intensivo para o conjunto da população.
- Ainda no que se refere à valorização do SUS, deve-se ressaltar
a importância dos profissionais de saúde que vêm se dedicando à atenção dos
infectados pelo novo coronavírus. É fundamental que o Estado brasileiro proteja
esses profissionais para o pleno desenvolvimento de suas atividades, uma vez
que são extremamente expostos ao risco de contaminação e às
jornadas de trabalho intensas e exaustivas
- A situação dos idosos merece
particular atenção. A banalização da ideia da prescindibilidade de suas
vidas no discurso político constitui afronta inadmissível à dignidade humana. A subsistência
dos idosos deve merecer políticas específicas, pautadas por preceitos éticos.
- O sucesso da política de saúde voltada à contenção do
coronavírus depende da adesão da população às
medidas orientadas pelo Estado, que deve ser capaz de organizar e incentivar a
ação social coletiva nesse momento estratégico. Assim, as ações e serviços
públicos de saúde devem pautar-se pelas melhores evidências científicas, com
total transparência, clareza e objetividade.
- Por fim, o investimento em pesquisa e formação superior deve ser
não apenas mantido mas incrementado de forma significativa e permanente. A
experiência da Covid-19 demonstra o quanto a ciência é imprescindível
na resposta às emergências, além do extraordinário proveito da vinculação
estreita entre a produção científica e os grande sistemas públicos de saúde,
com alto grau de fecundação recíproca.”
Faço minha a posição dos colegas da USP. Entendo que o papel do
Estado neste momento é fundamental para acolher a população e dar segurança na
condução de uma crise sem precedentes na
história.
Jamais propusemos isolamento social indefinido e fechamento
total de atividades. Propusemos um afastamento social temporário e monitorado
pelo indicador de exaustão do nosso parque
assistencial. Na medida que a situação for melhorando e os hospitais estiverem
suportando a pressão de demanda, podemos ir voltando ao nosso ritmo normal de
vida, sem os riscos de precisarmos de uma assistência de terapia intensiva e
não dispormos de respiradores e outros insumos. Este indicador deve ser
monitorado dia-dia.
Merece destaque o que foi adotado por algumas empresas logo no
início da crise. Para não parar a produção e, ao mesmo tempo, não expor a sua
força de trabalho, estabeleceram um plano de contingência contemplando
o afastamento temporário de funcionários de risco e ajuste do ambiente de
trabalho para evitar contaminação cruzada. O isolamento social é um tempo útil
também para que as empresas se preparem para enfrentar a crise com lucidez e compromisso social.
Convocar as pessoas para o trabalho de forma atabalhoada e sem o
mínimo de planejamento é uma atitude irresponsável e coloca em risco milhares
de pessoas.
Da mesma forma, um indivíduo
leigo preconizar tratamentos que ainda são experimentais como a tábua da
salvação de um problema deste porte, beira o charlatanismo, podendo ser caracterizado como um crime contra a saúde
pública nacional.
A epidemia ainda nem começou direito e já tem gente desafinando.
Haja paciência!
Se você tem dúvidas ou sugestão de tema, mande para cstarling@task.com.br
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