COMPREENDER O EFEITO PLACEBO

Explicar o efeito placebo de acordo com a ciência


Compreender o Efeito Placebo…


Nota: Este artigo é baseado no artigo Francês Placebo, es-tu là ? publicado na Revista Science et pseudo-sciences e no artigodo blog perspicacity.xyz, do Seth Miller, que conta a história do efeito placebo. A estes dois artigos serão adicionadas outras referências e também será considerada a versão traduzida do artigo francês, publicado no blog Science-Based Medicine.

Introdução – O efeito placebo

Os placebos são relativamente simples de compreender – um comprimido de açúcar, consumido por um doente adequadamente otimista, poderá fornecer um efeito semelhante ao fármaco a ser testado. As dores de cabeça são aliviadas. Os ataques cardíacos são evitados. A ansiedade diminui. Quem diz um comprimido poderá dizer outro tipo de intervenção controlo. Algo que seja semelhante aquilo que queremos testar e que, supostamente, terá algum tipo de efeito específico para lá do placebo.
Exceto que toda esta ideia – o “efeito placebo” – é uma ideia mal compreendida pela generalidade das pessoas, incluindo a comunidade médica.
Para percebermos o que é este efeito temos que primeiro compreender um pouco de história da medicina, ética do tratamento médico e sobre como a ciência é produzida.

Contexto histórico

No final de Agosto de 1793, o pânico tomou conta dos moradores da Filadélfia. Uma epidemia de febre amarela aterrorizou a cidade. Um terço dos infetados sucumbiu à doença; metade dos residentes de Filadélfia fugiu para o campo ou cidades próximas; pontes e estradas foram encerradas para parar o contágio; os doentes eram expulsos pelos familiares para as ruas ao primeiro sinal de doença; corpos eram enterrados em valas comuns.
Neste cenário dantesco surgiu um pequeno grupo de valentes médicos, liderado pelo Dr. Benjamin Rush. Rush foi um dos signatários da Declaração de Independência americana, professor da Universidade da Pensilvânia e um escritor prolífico. Um dos médicos americanos mais importantes do século XVIII. Escreveu o primeiro livro de química da América, bem como mais de 80 outras publicações importantes. Um aluno brilhante. As despesas do curso de medicina de Rush foram sustentadas pelo próprio Benjamin Franklin, em troca da promessa de praticar medicina e ensinar na Pensilvânia.
O Dr. Rush desenvolveu uma hipótese relacionada com o mecanismo de ação não apenas da Febre Amarela, mas de todos os vírus. Teorizou que as infecções virais operavam através de um processo uniforme, uma “ação convulsiva irregular nos vasos sanguíneos“. E propôs uma solução simples e radical: Sangria extrema.
Rush, em 1794, escreveu:
“Eu prefiro sangrias frequentes e pequenas, a grandes sangrias no início de Setembro. Mas no auge da epidemia, não vi nenhum inconveniente em retirar meio litro de sangue por cada episódio. Eu próprio tirei de muitas pessoas dois a três litros em cinco dias e de alguns quantidades muito maiores.”
Três litros é aproximadamente 40% do volume de sangue total de um adulto. Na sua clínica, o Dr. Rush tratava mais de 100 doentes por dia, descartando tanto sangue que o quintal da sua clínica zumbia com o barulho das moscas.
Observação: O Dr. Rush, um dos médicos mais famosos do seu tempo achava que a sangria era um tratamento eficaz. Não só a sangria. Rush foi o inventor da “cadeira tranquilizadora“, que supostamente tratava doentes mentais evitando que o sangue subisse à cabeça:
Obviamente que nem a sangria nem a cadeira tranquilizadora são tratamentos eficazes. Pior, as sangrias não só eram inúteis como altamente lesivas. Mas um médico considerado brilhante, com mais de 80 publicações na área da saúde, não conseguiu perceber isso. Agora, caro leitor, pense bem nisto quando achar que a sua experiência pessoal serve para validar tratamentos alternativos como a homeopatia, reiki, ozonoterapiaauto-hemoterapia, etc.
Então como podia um homem, descrito mais tarde como “o pai da medicina americana“, adotar uma prática que segundo os padrões de hoje se assemelha a uma atrocidade?
Simples…apesar do método científico ser algo praticado há séculos na área da física, demorou muito tempo a chegar à medicina. Isto porque o objeto de estudo não eram bolas de chumbo ou prismas de vidro, mas pessoas.
Uma experiência médica apropriada requer um grupo “controlo”. Ou seja, existe um grupo a quem os fármacos ativos são negados, enquanto outros têm a “sorte” de os receber. Com pessoas envolvidas neste processo, como poderíamos considerar tal forma de experimentação? Não poderia um médico ser condenado pelo sofrimento e pela morte daqueles que poderia ter ajudado, mas que não foram tratados pelo bem da ciência?
Devido a esta limitação ética, no final do século XVIII, não existia qualquer relato de ensaios controlados na literatura médica. Em vez disso, os médicos aprendiam e praticavam medicina como sempre fizeram ao longo da história: aprendendo com os seus professores e colegas e modificando os tratamentos com base em suas ideias e experiências pessoais. Crenças que levaram o Dr. Benjamin Rush a, literalmente, deixar o sangue correr livremente nas ruas de Filadélfia.
Em 1800, a medicina quase não havia progredido desde o tempo de Aristóteles. Os médicos usavam sangrias e sais de mercúrio para “curar” os seus doentes. Não eram mantidos registos de longo prazo e não eram feitas comparações entre os tratamentos. Passaram mais 150 anos antes que a ciência viesse a dominar a medicina. E numa das maiores ironias da história, o gatilho que permitiu a entrada da ciência na medicina era, em si, uma mentira.

Poderia um médico experimentar nos seus doentes, sem comprometer a sua ética? Em caso afirmativo, como?

Um estudo científico bem construído é, antes de tudo, uma admissão de humildade. O médico aplica o seu conhecimento e experiência únicas para melhorar um tratamento. No entanto, apesar de sua aprendizagem e experiência, não pode assumir que está correto sem provas concretas.
De forma ainda mais humilde, o médico deve admitir a possibilidade de que as suas crenças e preconceitos poderão influenciar os resultados. Alguns voluntários irão receber o tratamento experimental, e alguns não o receberão; se o investigador souber que grupo é qual, poderá haver uma propensão a tratar os dois grupos de uma forma diferente e influenciar o resultado.
Assim, durante a primeira metade do século XX, a profissão médica estabeleceu as diretrizes para o que seria conhecido como o ensaio controlado randomizado (RCT). Os doentes seriam colocados aleatoriamente em um de dois grupos: o primeiro grupo receberia o tratamento experimental, enquanto o segundo receberia um tratamento ineficaz, um “placebo”. Era crítico que nem o médico nem os doentes soubessem quem tinha sido designado para cada um dos grupos – a isto chama-se um estudo “duplamente cego” – por forma a minimizar os vieses. Os doentes, informados sobre a natureza do estudo científico, só participariam se concordassem com os riscos associados.
Isso era ético?
Cientificamente, a lógica que sustenta o ensaio controlado randomizado era robusta. A abordagem permitia claramente distinguir um tratamento eficaz de um tratamento ineficaz. A longo prazo, todos nós, como sociedade, beneficiaríamos com o conhecimento adquirido através deste tipo de ensaios. A medicina melhoraria de forma lenta, mas sustentada.
No entanto, a curto prazo, tais provações pareciam violar o juramento original de Hipócrates: “Em todas as casas que entro, vou entrar para ajudar os doentes“. Como poderia um médico “entrar nas casas dos doentes” com promessas de cura, para que apenas o acaso controlasse os seus destinos?
A resistência da comunidade médica a esta nova medicina científica foi feroz. Um estudo controlado randomizado era um procedimento complexo, eticamente duvidoso, que os médicos resistiram para proteger os seus doentes.
E essa resistência atravessou a Segunda Guerra Mundial, até à publicação de um artigo altamente influente em 1955, “The Powerful Placebo“, pelo anestesista Henry Knowles Beecher.
The Powerful Placebo” foi um marco na medicina moderna, introduzindo o termo “efeito placebo” no léxico global. A tese era simples: num estudo randomizado controlado, um placebo em si era mais do que uma técnica para eliminar os vieses – o comprimido de açúcar poderia efetivamente ajudar a curar um doente. Ou seja, o placebo tinha, de facto, efeitos clínicos. A crença de um doente de que era tratado seria suficiente para causar uma remissão da doença. Havia, neste contexto, não apenas uma correlação mas a atribuição de uma causalidade.
Essa ideia era credível para os médicos, que prescreviam tratamentos simulados para doentes difíceis há séculos. De fato, em 1775, o bispo inglês John Douglas antecipou esta descoberta, afirmando que:
“…a confiança do doente na habilidade do seu médico e a firme expectativa de alívio pelos seus meios têm às vezes uma eficácia maravilhosa na restauração da saúde (…)”
Thomas Jefferson, de forma mais concisa (e desaprovadora), resumiu esta condição, afirmando em 1807:
“Um dos médicos mais bem-sucedidos que já conheci assegurou-me que usava mais comprimidos de pão, gotas de água colorida e pó de cinzas de árvore do que todos os outros medicamentos juntos “.
A evidência do Dr. Beecher a favor do “efeito placebo” era realmente convincente. Cerca de 35% dos pacientes melhoravam apenas com placebos. Esta melhoria era verificada em relação à dor, náuseas e mudanças de humor, com uma consistência chocante (± 2%), sugerindo  “que um mecanismo em comum opera nestes diferentes casos, merecendo maior estudo“. Estes resultados foram confirmados por Haas alguns anos depois com base em 1.400 casos de 96 artigos. Também encontrou uma média de cerca de 30% de efeito, mas com bastante variação dependendo do que estava sendo estudado. A melhoria dos sintomas da dor, por exemplo, variavam de 15% a 60%.
Este efeito placebo foi revolucionário não apenas pela descoberta em si. O maior impacto foi desencadear uma revolução científica, permitindo aos médicos realizar ensaios controlados randomizados.
Porquê? Se os doentes melhoravam apenas com os placebos, então o dilema ético desapareceria. A participação no estudo em si poderia ser considerado um ato de cura. De forma ainda mais incrível, Beecher demonstrou que os tratamentos com placebo que os médicos tinham prescrito a doentes “intratáveis” eram realmente efetivos. Uma colher de açúcar conseguia fazia frente a remédios novos e antigos.
Existia uma necessidade da comunidade médica em acreditar nesta tese, tanto para os céticos como para os defensores da nova medicina científica. Num único artigo, as barreiras éticas que impediam a realização dos ensaios controlados randomizados tinham desaparecido. O efeito placebo proporcionou a história perfeita para permitir aos médicos abraçar a era moderna. O Dr. Beecher tornou-se, assim, um herói da medicina. Exceto que o papel era, de facto, uma farsa.
Mas esta farsa demorou muito tempo a ser desfeita, devido à falta de interesse de toda a comunidade científica e da indústria farmacêutica em estudar este efeito. Em mais de meio século, foram publicados cerca de 20 estudos sobre o placebo per se e apenas algumas centenas de estudos sobre o efeito placebo no contexto de estudos farmacológicos. As consequências desse desinteresse são imensas. Ainda hoje em dia, mesmo em artigos relativamente recentes, continuam a ser citados estudos antigos de metodologia questionável devido à persistência destas ideias – incluindo os famosos 30%.
Foi só em 1997 que investigadores na Alemanha revisitaram o artigo “The Powerful Placebo” e ficaram atordoados com o que encontraram. Analisaram os detalhes dos 15 ensaios originais citados por Beecher e nenhum deles apoiou sua tese.
Sim, os doentes do grupo placebo geralmente melhoravam. Mas alguns também pioravam (um fato que Beecher não incluiu nas suas estatísticas). Isto porque é expectável que os doentes passem por uma flutuação natural dos sintomas sem qualquer tratamento e mesmo que existam casos de melhoria espontânea. Portanto, o facto de alguns doentes se sentirem melhor não fornece evidência da existência de um “efeito placebo” especial. Outras causas das diferenças encontradas, citadas pelos autores do estudo, são a regressão à média, o viés do observador, a mudança de tratamentos no meio do estudo ou o desejo do paciente para agradar os investigadores. Todos estes efeitos foram agrupados numa única categoria, o efeito placebo.
Pior…Beecher foi considerado culpado de, repetidamente, citar de forma errada os resultados das investigações em que se apoiava.
Como um exemplo extremo destas citações falaciosas, os autores descrevem:
“(…)  Beecher afirmou que, num estudo de agentes anti-tússivos [fármacos para alívio da tosse], se verificava o efeito placebo em 36% dos 22 doentes e em 43% de outros 22 doentes. No entanto (…) sob nenhuma das administrações do placebo poderia ser demonstrada qualquer alteração significativa (…) Assim, a citação de Beecher estava errada (o que é surpreendente, já que o próprio Beecher foi um dos autores da publicação original). “
Ou seja, Beecher citou-se de forma errada a si próprio, o que é no mínimo estranho.
Além disso, Beecher certamente conhecia o conceito de remissão espontânea da doença. E com toda a certeza que estaria familiarizado com os detalhes dos seus próprios artigos científicos. Ele era um cientista tão proeminente nas décadas de 1950 e 1960 como o Dr. Rush tinha sido na década de 1790. No entanto, a revisão de 1997 descobriu que ele tinha citado mal os resultados de 10 dos 15 artigos estudados e esticou claramente as interpretações dos restantes estudos para tornar os dados mais adequados ao conceito do “placebo poderoso”.
Será que Beecher realmente cometeu erros tão básicos? Ou publicou intencionalmente este artigo para demonstrar a existência de um “placebo poderoso”, sabendo que isso iria sustentar o seu verdadeiro objetivo: o estabelecimento de ensaios controlados como armas fundamentais na evolução da medicina?
Seja qual for a razão, o artigo foi um dos mais influentes na medicina moderna, tendo sido citado mais de 2000 vezes. Todos nós já ouvimos falar do “efeito placebo” e mantemos a convicção na sua existência, mesmo que estudos subsequentes tenham confirmado que o efeito placebo, na verdade, não parece existir.
Em 2001, um grupo de investigadores publicou um artigo comparando ensaios que tinham um controlo com um “comprimido placebo” e “sem tratamento”. Descobriram que não havia diferenças entre os dois. Tomar um placebo (comprimido de açúcar) não tinha quaisquer efeitos clínicos.
Esta verificação foi repetida em 2004 e 2010 com os mesmos resultados. O placebo não demonstrava ter qualquer efeito clínico.
Na melhor das hipóteses, os investigadores detectaram o efeito placebo apenas nos resultados auto-relatados, como na dor, e somente quando existia um resultado contínuo e graduado (como uma escala de 1 a 10) em vez de um resultado binário (dor ou “sem dor “). E mesmo nesses casos, havia uma grande probabilidade de que os doentes reivindicassem melhorias ligeiras apenas para atender aos desejos do investigador e não porque realmente se sentissem melhores.
Verificou-se também que, para além do “objeto placebo” (o ato de tomar um comprimido) não ter qualquer interesse na obtenção dos resultados finais, bastava que os doentes tivessem conhecimento que faziam parte de um estudo clínico e serem regularmente avaliados por médicos para que surgisse este “falso efeito placebo”.
Ou seja, o efeito placebo parece estar apenas e só dependente da percepção do doente.

Os componentes do falso efeito placebo

A teoria da existência de efeitos clínicos com a utilização de um objeto placebo (comprimido de açúcar ou outro tipo de intervenção) ficou bastante fragilizada com a evidência que foi surgindo. Mas então o que são as melhorias habitualmente reportadas e que denominamos por efeito placebo?
Como falamos anteriormente, é expectável a existência de uma melhoria dos sintomas ou mesmo a regressão da doença nos participantes de estudos científicos. Por exemplo, uma infeção urinária simples resolve espontaneamente em cerca de 50 a 70% dos casos.
Assim, em vez de considerarmos o modelo habitual:
Temos que considerar um novo modelo em que o efeito observado é igual ao efeito específico do medicamento estudado ao qual se adiciona efeitos não específicos complexos no qual o processo de melhoria natural desempenha um papel importante.
Neste caso, a equação assemelha-se a isto: Efeito observado = efeito específico do medicamento + melhoria espontânea + um efeito residual que chamaremos provisoriamente de “efeito placebo”.
Agora vamos complicar mais um bocadinho. Este “efeito placebo” é, por sua vez, composto por diferentes elementos. Em primeiro temos que considerar os erros de medição realizados no decurso do estudo. Existem muitos desses erros potenciais, dependendo do tipo de estudo. Os mais conhecidos são:
Fenómeno de regressão à média: conforme falado no artigo sobre a validade dos testemunhos para avaliar a eficácia dos tratamentos, a regressão à média verifica-se quando a doença é “apanhada” num pico extrema de sintomatologia, sendo que é seguido posteriormente por uma melhoria ou regressão à média. Esta flutuação de sintomas ocorre independentemente de qualquer tipo de intervenção externa, mas pode falsamente indicar uma melhoria associada a essa intervenção.
Efeito de Hawthorne: os participantes do estudo podem mudar o seu comportamento habitual apenas porque estão a participar num estudo, o que pode levar a superestimar os efeitos do tratamento, particularmente no grupo controlo.
Paradoxo de Simpson: é um paradoxo estatístico que ocorre quando o efeito total é positivo mas, quando dividimos a amostra em grupos, o efeito desaparece ou fica negativo (ou vice-versa). Isto acontece porque existem fatores (os famosos fatores confundidores) que interferem com os resultados finais e podem não ter sido considerados na análise.
Fenómeno de Will Rogers: Os métodos de diagnóstico mais sensíveis podem aumentar a prevalência de uma doença e melhorar artificialmente o prognóstico de um doente sem que tal tenha realmente acontecido. Por exemplo, se um cancro é diagnosticado de forma mais precoce, mas não existe uma alteração do momento em que o doente irá morrer, o tempo de sobrevivência parece ter aumentado.
Como se observa na imagem abaixo, podemos ter a impressão que um doente com cancro vive mais tempo (barra verde) em comparação com um doente que foi diagnosticado mais tarde (barra laranja):
Na verdade, viveram o mesmo tempo. A única coisa que alterou foi a precocidade do diagnóstico realizado. E isto é importante perceber quando falarmos de rastreios de cancros.
Se todos esses erros de medição forem subtraídos, o que resta pode ser chamado de “efeito placebo verdadeiro”, um termo proposto por Ernst, para distingui-lo do efeito “falso placebo” como tradicionalmente concebido:
Verifica-se que, descontando todos estes efeitos, o verdadeiro efeito placebo é tão reduzido que se questiona a sua existência.

Quais são as consequências disto?

É importante, dada a informação descrita anteriormente, distinguir duas situações. No contexto de um estudo clínico controlado, o que interessa é determinar o efeito específico do tratamento. Ou seja, o que interessa é determinar se o grupo que recebe um fármaco ativo ou outro tipo de intervenção melhora mais que o grupo que recebe o placebo. Tudo o resto, a que temos chamado de “efeitos não-específicos” consistem em elementos complexos que não interessa a quem realiza os estudos.
No entanto, na prática clínica, quando um médico está a tratar um doente, o efeito observado é igual ao efeito farmacológico, mais a melhoria espontânea, mais o chamado “placebo verdadeiro“…ou, como proposto por vários investigadores, em vez de efeito placebo, vamos chamar-lhe de efeito de contexto ou “efeito contextual.
Os erros de medição desaparecem no ambiente clínico, o que explica que o efeito geral pode ser ligeiramente inferior ao observado nos estudos controlados.
Os diferentes componentes deste efeito contextual verificado no ambiente clínico, apesar de na globalidade serem pequenos, têm a sua utilidade.
Por exemplo, o ritual terapêutico: está provado que os resultados são diferentes de acordo com a via de administração do fármaco, o gosto, o nome, o preço, a cor, etc.
O segundo tem a ver com as condições ambientais/culturais: a personalidade e as crenças do paciente, a atitude do seus familiares, o lugar onde o cuidado é prestado, a atitude da equipa de tratamento, etc.
Finalmente, parece que o elemento mais importante é a relação médico/doentealgo cada vez mais difícil de promover nos dias de hoje devido a questões políticas e organizacionais.
Foi realizado um estudo interessante para avaliar a importância relativa de cada um destes três fatores e para ver como podem ser combinados por forma a proporcionar uma melhoria clínica. Assim, foram criados três grupos de doentes que sofriam de síndrome do intestino irritável. O primeiro grupo foi colocado numa lista de espera, o segundo recebeu tratamentos de acupuntura placebo  e o terceiro recebeu acupuntura placebo acompanhado de atenção especial do médico (um relacionamento caloroso, o estabelecimento de uma relação de confiança e atenção sustentada).
No final de seis semanas, observaram uma melhoria de 28%, 44% e 62%, respectivamente. Os autores concluíram que “os efeitos não específicos podem produzir resultados estatísticos e clinicamente significativos e a relação médico doente é o componente mais robusto“.

Mecanismos psicológicos do efeito contextual

Os dois principais mecanismos são o condicionamento e o efeito da sugestão.
O condicionamento já é conhecido desde o tempo de Pavlov. Todos conhecemos a história do cão que salivava apenas com um estímulo sonoro, um reflexo condicionado introduzido expondo o cão ao estímulo sonoro quando era alimentado.  O mesmo mecanismo ocorre ao tomar um placebo. Como Gøtzsche escreveu no The Lancet:
“Uma cápsula de lactose tem um efeito maior em pessoas que anteriormente reagiram favoravelmente à toma de uma benzodiazepina do que naqueles que nunca a tomaram”.
Quanto ao poder da sugestão já é conhecido há muito tempo, sendo o seu pioneiro Émile Coué. Toda a teoria da hipnose tem como base este conceito, que podemos definir como a influência que um indivíduo exerce sobre o outro. Por exemplo, o médico dizer ao doente que vai ficar melhor, que a doença de que padece não é grave. Ou que o medicamento prescrito é muito bom e tem tido excelentes resultados.
Um estudo interessante evidencia o seu papel na implementação do efeito contextual. Foram seguidos 200 doentes com doenças funcionais. Os doentes foram divididos em quatro grupos que receberam um placebo ou nada e uma consulta positiva ou negativa. O primeiro grupo recebeu um placebo e uma consulta positiva (garantia de diagnóstico correto, certeza de cura), o segundo, um placebo e uma consulta negativa (hesitação sobre o diagnóstico, falta de confiança sobre o curso da doença) e os outros dois grupos tiveram uma consulta positiva ou negativa sem um placebo. Após duas semanas, 64% dos pacientes que obtiveram uma consulta positiva melhoraram em comparação com 39% daqueles que receberam uma consulta negativa. Mas não houve diferenças significativas entre aqueles que tomaram ou não um placebo. A melhoria observada foi, portanto, devido à sugestão criada pelo médico. O “objeto” placebo nada acrescentou.
Como Bourreau e Coichard escreveram: “É inútil recorrer a um placebo para induzir um efeito placebo“. O que poderia ser escrito mais claramente, dizendo que o objeto placebo não é necessário para o efeito contextual.
Estes efeitos psicológicos assentam em alterações fisiológicas a nível cerebral, com libertação de neurotransmissores que serão os mediadores de tal efeito. No entanto, dada a sua complexidade, deixaremos esse efeitos para outro artigo.

E quanto à utilização do efeito placebo “verdadeiro” na prática clínica

É óbvio que o placebo, como objeto, é útil em estudos clínicos controlados. Nessa configuração, as comissões de ética exigem que o doente tenha conhecimento disso e dê o seu consentimento informado.
Na prática clínica, o “objeto placebo” não traz qualquer utilidade prática. A discussão que há muito tempo se arrasta se devemos ou não utilizar o placebo – objeto – na prática clínica fica assim obsoleta.
Isso não implica que não possamos usar o efeito placebo na prática clínica. Podemos e devemos. Verifica-se que o efeito placebo verdadeiro ou efeito contextual parece ser bastante eficaz no controlo da dor e provavelmente em outras doenças funcionais (dispepsia, intestino irritável, fibromialgia, etc.), já que são problemas muito dependentes da percepção subjetiva dos doentes. Pelo contrário, em doenças oncológicas e infecciosas, este efeito contextual está praticamente ausente.
Os autores de um estudo sobre este tema esclarecem bem esta questão:
“Por muitos anos, os placebos foram definidos pelo seu conteúdo inerte e o seu uso como controlos em ensaios clínicos e tratamentos na prática clínica. As descobertas recentes mostram que os efeitos do placebo são eventos psicobiológicos genuínos atribuíveis ao contexto terapêutico geral e que esses efeitos podem ser robustos em ambientes laboratoriais e clínicos. Também há evidências de que o efeito placebo pode existir na prática clínica, mesmo que não seja dado o placebo [objeto]. Uma maior promoção e integração de pesquisas laboratoriais e clínicas permitirá avanços no uso ético de mecanismos de placebo que são inerentes aos cuidados clínicos de rotina e incentivam o uso de tratamentos que estimulam o efeito placebo “.
Portanto, o objeto placebo manter-se-á no futuro previsível na realização dos estudos clínicos controlados que são essenciais para a investigação médica. Quanto ao efeito do objeto placebo, isso não existe…Quanto ao efeito que denominamos placebo, a sua existência é inegável, embora limitada.  Seria melhor chamar-lhe simplesmente de “efeito contextual” para entender melhor sua verdadeira natureza e fazer com que suas conotações mágicas desapareçam.

Dr. João Júlio Cerqueira

Médico Especialista em Medicina Geral e Familiar

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